sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

ARTE POÉTICA, de Jorge Luís Borges

Mirar o rio  cheio de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que, como água, passam as faces.    

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha  não sonhar e que a morte
Que teme  nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou no ano um símbolo
Dos dias do homem e de seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Em música, rumor e símbolo.  

Ver na morte o sonho, no ocaso
Um ouro triste, tal é a poesia
Que é imortal e pobre.  E volta
Como voltam a aurora e o ocaso.  

Às vezes uma face, nas tardes,
Nos olha do fundo dum espelho;
Como esse espelho deve ser a arte  :
Que revele nossa face verdadeira.  

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao divisar  a sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca       
De verde eternidade, não de prodígios.    

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal  dum mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.       



(Tradução de Antonio de Campos /
 Olinda, Pernambuco)